Em dimensões distintas, os trabalhos da
artista Marie Ange Bordas e da arquiteta Ana Paula do Val visam à quebra de
normativas propostas em mapas oficiais
A artista gaúcha Marie Ange Bordas define a si mesma como uma nômade
privilegiada. Filha de pai francês e mãe brasileira, ela passou a maior parte
da vida trocando de endereço dentro e fora do Brasil. Estar em constante
movimento tornou-se uma necessidade e serviu de motivação para imergir na
dinâmica das pessoas que estão em trânsito ao redor do planeta não por uma
questão de escolha, mas por terem sido forçadas a fazê-lo, seja em razão de
conflitos, seja por consequências da máquina econômica.
A convivência com refugiados em vários países deu origem ao projeto
artístico Deslocamentos, iniciado há dez anos. Em dezembro, Bordas
finalizou esse projeto fazendo a curadoria do caderno Sesc_Videobrasil Geografias
em Movimento. O livro reúne fragmentos artísticos de seu longo percurso e
dialoga com artistas e teóricos que, em certa medida, estavam conectados com a
temática da territorialização em movimento e da expressão dos espaços
geográficos a partir de representações além da objetividade endurecida das
linhas e contornos dos atlas oficiais. Uma cartografia em movimento, mais
humana e afetiva.
"A cartografia é um desenho em movimento. A ideia que temos de
mapas é uma ideia eurocêntrica, etnocêntrica. Gosto muito de uma coisa que o
Rogério Haesbaert fala sobre a territorialização no movimento, as
territorializações simbólicas, subjetivas. Tem muito mais a ver com o indivíduo
contemporâneo do que essa ideia de raiz ligada ao lugar, ao Estado-nação, que é
uma criação, uma imposição", afirmou, em referência ao geógrafo autor de O
mito da desterritorialização: dos fim dos territórios à multiterritorialidade,
que também assina um texto do caderno.
Em 2001, partindo de Nova York em direção a Johannesburgo, na África do
Sul, Bordas entrou em contato com organizações que davam suporte a refugiados.
A partir desses encontros, organizou oficinas de vídeo, foto, áudio e
performances. As propostas artísticas de interação foram se modificando
conforme ela também se dirigia a novos locais: de Johannesburgo para o albergue
de refugiados em Massy, no subúrbio de Paris, depois o campo de refugiados de
Kakuma, no Quênia, seguindo ao enclave tâmil na costa leste do Sri Lanka e ao
East End de Londres.
"Como artista, posso ser mais efetiva no uso do processo criativo
para criar um ambiente de segurança nesses espaços de conflitos, onde essas
pessoas possam se sentir protegidas para pensar em sua situação fora do
discurso humanitário e passar a interagir em um discurso político",
afirma. "A minha ideia era quebrar com esses jogos de representação, criar
espaços menos controlados. Meu trabalho teve muito essa questão de transformar
o discurso depreciativo de sua realidade, tentar desconstruir o discurso que
vitimiza e levar em conta o agenciamento de cada um", disse Bordas.
"Quando cheguei ao campo (de refugiados) do Quênia, na minha
primeira caminhada, a primeira pessoa que eu encontrei foi um banqueiro
milionário da Eritreia. A vizinha dele era uma mulher de um vilarejo agrícola
do Sudão do Sul. O universo de classes, de culturas nesses locais é muito
grande. Tratar a questão do refugiado como uma coisa só, homogênea, é muito
complicado."
Cartografias afetivas Quebrar as normativas e os
estereótipos que geralmente acompanham o tema do refúgio sempre foi um norte
para Bordas. Durante sua temporada em Paris, onde conviveu com refugiados de 80
nacionalidades diferentes, ela notou a formação de redes que superavam as
fronteiras formais entre os países. Por esta rede, mantida pelos refugiados com
parentes e amigos locados em diversas partes do mundo, circulavam dinheiro,
documentos e bens, mas também afeto, memórias e trivialidades. "À
medida que me entranhava nessas redes, tecia meu próprio atlas, acumulando
lugares, afetos e possibilidades neste meu corpo-território", escreveu a artista.
É essa premissa que aproxima seu trabalho ao de Ana Paula do Val. A
arquiteta e artista plástica, que também assina um artigo no caderno organizado
por Bordas, realizou um trabalho em 2011 com um grupo de bordadeiras no parque
Santo Antônio, no extremo sul da cidade de São Paulo.
O objetivo era bordar um atlas afetivo que transbordasse as noções
formais de mapeamento e trouxesse consigo sinestesias e subjetividades, por
meio de uma desconstrução dos imaginários que acompanham esta região específica
da cidade, sempre lembrada como entre as piores em índices de desenvolvimento,
educação e violência.
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Reprodução do caderno Geografias em Movimento
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"Todos os mapas que a gente tem, desde 1500, foram feitos para a
dominação e para o controle. E não deixa de ser diferente hoje", disse
Val. "Logo que eu comecei a fazer esse mapeamento com as bordadeiras,
comprei um mapa desses que vendem para turistas. E o mapa, curiosamente,
terminava em Cidade Dutra. O que existe para baixo não estava no mapa. Isso
vende na banca de jornal. E é uma cartografia que simplesmente apaga a periferia
sul. Isso é poder simbólico. Apagou da história, não existe."
Após semanas de imersão territorial em que as seis bordadeiras foram
convidadas a perceber o espaço pelo qual circulavam usando não só a visão, mas
a audição, o paladar e o olfato, foi construído um repertório reflexivo da
leitura desse território. "Essas mulheres moram no Jardim São Luís e não
conheciam o restante da zona sul", explicou Val.
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Desenho do mapa feito coletivamente por grupo de bordadeiras, em trabalho organizado por Ana Paula do Val
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No mapa produzido a partir do projeto, letras de músicas dos Racionais
MC’s se misturam a desenhos de marés de casas, árvores e crianças empinando
pipas. "As questões mais afetivas, subjetivas, não vão fazer parte de
mapas oficiais. São cartografias que a gente constrói à rebote do Estado. São
outras possibilidades de olhar o mundo. Se você olha, parece um desenho, mas
não é só isso", disse. "Estamos falando de uma questão de
identidade."